Parto Humanizado Hospitalar
Relato de Parto Cintia Andrade Pessoa

Relato de Parto Cintia Andrade Pessoa

Assim que descobrimos a gravidez, entrei de cabeça em mundo até então desconhecido. Eu já tinha ideia que queria um parto normal/natural pelos benefícios para o bebê e a mãe, mas não fazia ideia que essa busca seria tão intensa e difícil. A busca pelo parto normal e humanizado, pelo processo mais natural e com o mínimo de intervenções, só foi possível com muito estudo, amparo nas evidências científicas, conversas, rodas e engajamento.

Após 40 semanas e 4 dias, o dia 09 de setembro foi o escolhido por Clarice pra chegar. Aguardávamos dia após dia, ansiosos, mas conscientes no tempo do meu corpo e do bebê, que até então não dava sinais claros da sua chegada. Tudo começou na madrugada do Sábado (8) pro Domingo (9). Justamente neste dia fomos dormir super tarde, eu, meu marido e minha mãe, embalados pelos afazeres para a vinda de Clarice, conversas e comidinhas na madrugada. Antes de dormir, ainda fomos fazer alguns exercícios de Spinning Babies que aprendemos e ajudam na preparação para o parto. Deitamos às 4h da manhã e acordei com uma cólica. Achei estranho a cólica me acordar (já que costumo dormir quando estou com cólica, rs), olhei o relógio e eram 4:48h da manhã. Esperei um pouco ver se passava, fui ao banheiro e vi sangue. Assustada, chamei Bruno que logo entrou em contato com a obstetriz Gabrielle (do Coletivo Nascer), que nos acalmou dizendo que podia ser o início dos pródromos (primeiros sintomas que antecedem o trabalho de parto). Alguns minutos depois, mais um sinal, parte do tampão. Fiquei feliz e animada, meu corpo estava dando sinais e o trabalho de parto mais cedo ou mais tarde ia engrenar. Deitei. A cólica incomodava de novo e sumia. Aproveitei e medi minha pressão, pois no final da gestação passei a controlar diariamente, estava um pouco alterada. A pressão deu 17×11 e ficamos bastante assustados. A obstetriz nos aconselhou a ir ao PS do Hospital para verificar. Com o vai e vem das cólicas, cronometramos as dores por pelo menos 1 hora e estavam ritmadas, com intervalos bem pequenos, em torno de 2 minutos e meio entre uma contração e outra. Isso me deixou intrigada: os intervalos das contrações já estavam muito pequenos e eu com as dores bem controladas. As sensações eram estranhas, sentia frio e minhas pernas tremiam. Levantei e sentia mais contrações. Respira, caminha, bola de pilates e as contrações estavam vindo com mais força. Acorda a mãe, prepara para sair e… contrações. Estava bem calma e animada por finalmente o meu trabalho de parto ter iniciado, mesmo achando que aquilo seria apenas o início de longas horas ou até dias. No caminho, falei um pouco com a obstetriz por telefone, ainda conseguia conversar entre as contrações, mas elas estavam se intensificando.

Chegamos ao Hospital umas 8:30h já com as malas da maternidade. Aferi a pressão e ela continuava alta (16×10). Com aquela pressão eu sabia que não voltaria mais pra casa tão cedo, precisava ser monitorada. Frio e tremedeira nas pernas mais intensas. Passamos pela obstetra do plantão e surpresa: 7cm de dilatação! Sabia que não dependia só da dilatação, mas até me emocionei, porque provavelmente aquele seria o dia que conheceria minha filha e estávamos progredindo tão rápido! As contrações estavam doloridas, mas a dor ainda bem suportável. Com o exame de cardiotocografia vimos que as contrações estavam bem constantes e eu sentia somente as mais intensas. Força, estava muito perto de conhecer minha filha e o que queria mais era que tudo evoluísse da forma mais natural possível. Ainda na sala do cardiotoco, lembro de só “reclamar” da fome que estava sentindo, em meios às contrações nem me lembrei de tomar café antes de irmos. Comi algum lanchinho que tinha na bolsa para tapear a fome. As enfermeiras vinham, me incentivavam e parabenizavam pelos 7cm e por estar bem e tranquila nas contrações. Apesar dos 7cm, sabia que era só o começo, tudo precisava evoluir e meu corpo estava trabalhando para essa evolução naturalmente. Eu me preparei psicologicamente para chegar até ali onde estava, sonhei com este momento e estava ansiosa para passar pelas contrações e por toda a experiência do parto normal.

Prepara para sala de parto, contração, tira roupa, contração, veste roupa, contração, sobe na maca, contração. Tudo era feito em marcha lenta, respeitando o tempo do meu corpo recuperar o fôlego para próxima. A caminho da sala de parto, me despedi da minha mãe que me acompanhava e, emocionadas, mal conseguimos falar a última palavra. Fiquei um tempo sozinha com a enfermeira, enquanto preparavam a sala. Ela saiu e a minha lembrança daquele breve momento é de muita concentração, empoderamento e oração. Bruno retornou da sua troca de roupa e assim que entrei na sala de parto a minha equipe chegou, primeiro a minha querida doula Pat Abdo (Dona Pat), logo depois a obstetriz Juliana Freitas e a obstetra Olívia Oléa, do Coletivo Nascer. Uma luz gostosa, um “céu estrelado”, as músicas ouvidas durante toda a gestação (e que por tantas vezes imaginei naquele momento), pessoas confiáveis e que me traziam segurança – tudo contribuía para o ambiente hospitalar ficar mais confortável e acolhedor.

Neste primeiro momento, as contrações vinham cada vez mais fortes e a respiração profunda ficando cada vez mais alta, assim como a vocalização. Inicialmente, fui para a ducha quente e brincava que poderia ficar ali por horas, pois realmente era muito relaxante. Não sei precisar o tempo que passei na ducha, o tempo no trabalho de parto não é mesmo o cronológico. Depois fomos fazer alguns exercícios de spinning babies (daqueles que estava fazendo em casa) para ajudar a Clarice a descer no seu caminho. As contrações já estavam bem mais intensas neste momento e ficar nas posições dos exercícios não era fácil, mas sabia que essa era a melhor forma dela se posicionar para nascer. Quando vinha a forte contração eu me lembro das meninas e Bruno em minha volta me abraçando, fazendo massagem em minhas costas e me dando força e carinho. Me senti completamente acolhida, cuidada e segura de tudo e realmente isso me dava forças para seguir em frente. As contrações me consumiam as energias, era um esforço contínuo de todo o corpo trabalhando, mas também me davam mais força para continuar, pois sabia que estava cada vez mais perto. Lembro de olhar o relógio somente duas vezes, não queria saber quanto tempo tinha se passado, não queria saber em quanto estava a dilatação. Eu me concentrava cada vez mais em mim – nos meus sentidos e no trabalho do meu corpo como passagem. Bruno fez em mim a técnica do rebozo (com o tecido) e, neste momento, lembro que veio uma contração tão forte que eu conseguia imaginar ela percorrendo o seu caminho e descendo cada vez mais pelo canal. As contrações vinham em fortes ondas e eu sabia que era uma progressão lenta e estava disposta a ser respeitosa com o tempo que durasse o processo naturalmente. Quase sempre de olhos fechados eu me concentrava, atenta a sentir todos os sinais que meu corpo queria me comunicar. Spinning babies, livre movimentação, bola de pilates, agachamentos, ducha, sempre tentando encontrar as melhores posições para passar pelas doloridas contrações, ao mesmo tempo que ajudasse ela a descer. Já havia se passado algum tempo neste processo, estava muito cansada. Ao entrar na banheira, as contrações já estavam bem mais fortes, mas assim que entrei senti que a água quente aliava um pouco a sensação de dor. Na posição que entrei encostei a cabeça na borda e consegui cochilar entre uma contração e outra. As contrações estavam aumentando muito a intensidade e a todo momento estava sendo monitorada, assim como os batimentos dela. ”Estou exausta”, falei para Bruno, balbuciando sem forças. Este foi o único momento em que pensei na analgesia, mas me contive e não cheguei a pedir. Lembro de Bruno e a doula Pat me dando força e me incentivando no processo: “que força você tem”, ”está cada vez mais perto”, “respira”, “que maravilhosa” e realmente era mais fácil suportar com eles ao lado. A médica sugeriu uma nova posição na banheira (de barriga para baixo) e apesar da dor bem mais forte acatei e senti algo diferente – como se fosse ela descendo mais e percorrendo o seu caminho pelo canal. Em meio a dor, pensava o quão incrível é meu corpo e no que realmente estava acontecendo. É dor sim, mas ela não estava atrelada a sofrimento. É lindo de sentir a potência do meu corpo e que em breve a minha filha estaria chegando. Nesta reta final da banheira os batimentos dela estavam mais reduzidos, pediram para sair rapidamente e me explicaram que teriam que fazer um cardiotoco para acompanhar. Em pé saindo da banheira veio uma contração bem mais forte e alguma vontade de fazer força. Achei que ela vinha ali e me entreguei. Todos correram para me apoiar, pois acredito que tiveram a mesma impressão. Eu sempre concentrada e de olhos fechados, neste momento já não existia vocalização, eram uivos por conta da intensidade. Já sem forças e me escorando em um e em outro, consegui chegar à maca. Estava sendo monitorada, mas suportar as contrações já muito intensas na maca com a limitação do cardiotoco era muito incômodo. Logo a Dra. Olívia me explicou que, apesar de incômoda, era aquela a posição em que os batimentos dela estavam respondendo melhor, então não tive dúvidas em acatar. Entre uma contração e outra, ao me deitar na maca ouvi “dilatação total” e sabia que depois de quase 12 horas em trabalho de parto o momento finalmente tinha chegado. Fizemos um toque e ela pode sentir que, depois da banheira, Clarice tinha descido bastante – agora estava bem próximo dela chegar.

Já não via muita coisa, estava concentrada em cada contração e ansiosa pela expulsão. Força! Eu não me lembro exatamente quantas “sessões de força” eu fiz, mas ela ainda não vinha. Após algumas tentativas, lembro da Dra. me dizer que iríamos precisar da ajuda do vácuo e, como já conhecia esse aparelho, sabia que não era nada invasivo e ia ajudar para melhor posicionar Clarice na expulsão. Mesmo assim, fiquei tensa, e, por conta da adrenalina, as contrações mudaram de ritmo e demoraram mais para vir novamente. Um recorte desse momento – a obstetriz Juliana me explicando sobre esta mudança de ritmo das contrações calmamente, ao mesmo tempo acariciava minha mão. A Dra. fez um pequeno puxo com o vácuo e elas me incentivaram, na próxima contração, a fazer muita força. Não sei bem quantas foram as minhas tentativas, mas sabia que agora só dependia de mim. Senti medo como não tinha sentido antes, mas, ao fazer a primeira, a segunda e terceira força, todos me incentivavam a continuar e diziam que estava indo bem. A dra. Olívia e a obstetriz Juliana me explicavam calmamente a forma correta de fazer a força e, apesar de me sentir totalmente em um outro mundo (aquele que se chama Partolândia), eu estava conseguindo seguir suas orientações. Havia uma movimentação próxima a porta, olhei rapidamente e vi algumas pessoas. Mesmo no meu estágio de ‘’não consciência’’, eu sabia que eram uma equipe, a pedido da Olívia: caso algo saísse do previsto, teríamos que agir rapidamente. Não me importei com aqueles olhares ansiosos no quarto, já não via mais nada nem ninguém a minha frente, mas como eu senti! Senti a mão quente da Patrícia (doula), a voz doce da Juliana (obstetriz) e a força resolutiva da Olívia (obstetra). Senti o poder do feminino, mulheres incríveis me assistindo e me dando força para parir. Senti segurança e o apoio caloroso do meu marido ao meu lado, que totalmente extasiado e envolvido pela adrenalina, confiava em meu corpo para trazer a nossa filha ao mundo. Ele foi incrível em todo o processo, logo entendeu o tamanho da minha força e superação e não me deixou desistir.

Força! Eu estava passando pelo chamado “círculo de fogo” e sabia o quão próximo estava de tê-la em meus braços. Senti toda a queimação que tanto tinha ouvido falar, as sensações eram muito intensas, dor e prazer se confundiam em um mesmo segundo. A próxima força veio da alma, uma força longa e um grande alívio, finalmente senti a sua cabecinha sair de mim. Todos demonstraram animação e me incentivaram a sentir ela chegando. Coloquei a mão entre as minhas pernas e me surpreendi: como ela era cabeluda! Sentir a sua cabeça dá um ânimo e uma potência extraordinária. Senti mais uma contração, mais um fôlego e com uma força longa senti os seus ombros saírem. Agora faltava muito pouco. Força! e senti todo seu corpinho escorregar rapidamente e escapulir do meu corpo. Não dava para acreditar, mas nós conseguimos! Clarice escorregou para o mundo e veio direto para meu colo e foi como estivesse recebido o mundo em meus braços. Ainda unidas pelo cordão umbilical pulsante e com Bruno do nosso lado iniciamos nossa hora dourada. Que momento mágico, incrível e intenso! Ao som do seu choro forte e assustado, embalei ela em meus braços e ficamos assim abraçados nós três, extasiados em um mar de ocitocina e emoções. Senti a minha boca seca e minha lágrima cobrindo os olhos, “minha filha, minha filhinha” dizia. Senti sua minúscula mãozinha procurando algum suporte e seu cheiro de nascimento (aquele que nunca mais se esquece). Senti o seu calor e sua pele vermelha e quente, de sangue, de vérnix. Senti a vida ali naquele quarto de hospital. Senti amor (e quanto amor!) por Deus, pela minha filha, pelo meu marido, pela minha equipe. Senti respeito pela natureza, pelo meu corpo. Senti vínculo com aquele serzinho que até agora há pouco estava dentro de mim. Ainda ligadas pelo cordão umbilical pulsante, ela procurava meu peito com a boca, em um instinto inexplicável. Senti reconhecimento quando abriu seu olhinho puxado e apertado buscando aquela voz que estava acostumada a ouvir. Senti paz, ela nasceu com saúde e conseguimos que o seu processo de chegada ao mundo fosse gentil e respeitoso. Era tanta ocitocina no ar que a placenta saía naturalmente do meu corpo, ao mesmo tempo em que lambia a minha cria, a nossa filha, na nossa hora dourada. Sim, eu mesma a trouxe ao mundo e não podia me sentir mais abençoada e agradecida a Deus por tamanha força e graça.

 

Agradeço ao Coletivo Nascer que me permitiu ter segurança e confiar inteiramente na equipe e me proporcionou essa experiência transformadora com meu parto. Agradeço à querida obstetra Olívia Olea por seu cuidado, segurança e força. Agradeço à amorosa obstetriz Juliana Freitas, por sua delicadeza, tranquilidade e carinho. Agradeço à doula Patrícia Abdo, que exerceu um papel fundamental com as massagens, incentivos e cuidados. Agradeço à minha querida amiga e obstetra Ângela Araújo que, mesmo longe, me acompanhou desde o começo da gestação, sempre me orientando e incentivando à minha escolha do parto normal. Agradeço ao cuidado e carinho da amiga e obstetra Natália Kovalinsky, que me apoiou e orientou quando precisava. Ao meu marido, que entrou de cabeça comigo nesse mundo da humanização, buscou informações e nos cercou de cuidados e carinho ao longo da gestação e no momento do parto. Obrigada, filha, por essa experiência extraordinária, transformadora e intensa. Ter o meu corpo como casa e instrumento para te trazer ao mundo demonstra uma potência sem igual e um privilégio divino.

Clarice, que sua vida seja de luz.

Este post tem um comentário

  1. Preciso rasgar a minha seda e dizer, porque ela merece, porque nunca canso de falar isso, o quanto Cintia foi gigante nesse dia. De uma força, entrega, resiliência inacreditáveis.
    Eu nunca vi ninguém ter tanta determinação e certeza do que queria, focar aquilo e atingir, como se não houvesse outra hipótese. Nem sei com o que comparar, parecia uma medalhista de ouro olímpica.
    Obrigado por me proporcionarem, mesmo eu sendo mais um coadjuvante ali, o dia mais espetacular da minha vida. A ela em primeiro lugar, mas também à nossa querida doula Dona Doula Pat Abdo e ao Coletivo Nascer. Vocês foram maravilhosas e extraordinárias.

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